William Jefferson Clinton é um cidadão do mundo que dispensa apresentações. Mais conhecido como Bill Clinton, foi Presidente dos Estados Unidos da América (o 42.º) entre 1993 e 2001, “ensanduichado” entre George Bush pai (o 41.º) e filho (o 43.º), e é, provavelmente, mais conhecido pela proatividade que imprimiu à sua relação com uma estagiária da Casa Branca do que por qualquer outra coisa, das muitas que seguramente terá feito nos seus oito anos de presidência.
Entre estas últimas está, porém, a atenção sem precedentes dada a um aspeto da governação que não era, até então, dos mais prementes ou mediáticos: o da qualidade da legislação e, portanto, ao ramo da ciência que estuda a produção normativa, a legística.
Pragmático e fiel a um princípio adotado ainda em campanha – um dos 3 pilares da sua estratégia baseava-se na frase emblemática “It’s the economy, stupid!” –, percebeu que os custos de contexto associados à má legislação ascendiam, já em 1991, a muitos milhões de dólares por ano, suportados pelo Estado, mas, sobretudo, pelas empresas e pelos cidadãos. Na verdade, a despesa decorrente de regras mal feitas, com redações dúbias, mal interpretadas e aplicadas de forma incoerente, muitas vezes em virtude de situações não urgentes, era – e é, ainda hoje – um problema sério das sociedades cada vez mais complicadas em que vivemos.
É um problema tão antigo que outro estadista famoso (costuma dizer-se que foi o Otto Von Bismarck, mas não foi) terá dito qualquer coisa como “Se as pessoas soubessem como são feitas as leis e as salsichas, não queriam nada com nenhuma delas!”
Vem toda esta conversa a propósito do conjunto de regras que enquadram este maravilhoso mundo da Fórmula 1 e que, parece-me, têm vindo a assumir maior visibilidade em todos os fins de semana de corrida. É verdade que sempre houve regras em todos os desportos (até os jogos olímpicos dos inigualáveis Monty Python tinham um mínimo de disciplina comum) e que a complexidade da F1, como pináculo do desporto automóvel que é, já não se satisfaz com as 3 (sim, eram só três!) páginas de regras que as equipas tinham de ler e cumprir para participar no primeiro Grande Prémio do primeiro Campeonato do Mundo de F1, em 1950.
No entanto, a ideia com que fica quem acompanha todo um Grande Prémio, desde as notícias sobre a antevisão da corrida até aos rescaldos mais detalhados e minuciosos que lhe sucedem, é a de que é completamente impossível conhecer a cada momento as regras em vigor e – pior – que estas regras ou a interpretação de cada uma delas muda várias vezes ao longo da temporada.
Decidido a perceber porquê, comecei por verificar que, atendo-me apenas às regras exclusivas da F1 (e deixando de parte, portanto, as que são comuns a todas as competições da FIA), há 3 grandes capítulos de regras: o regulamento desportivo, o regulamento técnico e o regulamento financeiro. O primeiro tem 112 artigos e 9 anexos (são 112 páginas), o segundo tem apenas 17 artigos e 6 anexos. Mas, como cada artigo tem, em média, 10 parágrafos, são mais ou menos 170 regras em 179 páginas. O terceiro (que se subdivide em regulamento financeiro e em regulamento financeiro relativo às unidades de potência) tem um total de 19 artigos, 4 anexos (um dos quais dedicado a definições e interpretações) e um documento com alterações, num total de 120 páginas.
Cansado só de fazer este levantamento estatístico do que parece ser (e é) um labirinto normativo de onde dificilmente sairemos vivos, não tive coragem de cumprir a promessa que ando há anos a fazer: ler atentamente cada um destes documentos do princípio ao fim. Acho que vou continuar a ler as regras à medida que estas forem sendo motivo de polémica. O que significa que, por este andar, daqui a 3 corridas devo ter tudo lido...
Com alguns problemas de consciência por não ter lido tudo – e uma admiração crescente por quem conhece as regras quase todas de cor, como acontece com os comentadores da Sport TV e, claro, por quem tem de as aplicar –, revisitei, ainda assim com maior cuidado do que o que costumo dedicar às notícias que os citam, alguns aspetos que têm estado na berlinda ultimamente. A pontuação a atribuir quando a corrida não é completada, as situações em que a corrida pode ou não ser concluída, as condições em que as bandeiras vermelhas podem ou devem ser mostradas, os pelo menos 16 minutos que têm de separar o início da volta de formação da corrida do momento em que os pilotos ouvem, na grelha, o hino nacional de cada país, os 16 metros que separam cada fila na grelha de partida (há aqui alguma fixação com o 16…). Enfim, um sem número de “regras e regrinhas” que, como já disse, aumentam exponencialmente o meu respeito por todos aqueles que têm de as cumprir, de as aplicar e de as comunicar.
Se juntarmos a isto as notas que a Direção de Corrida emite em cada Grande Prémio, com interpretações, recomendações, esclarecimentos, instruções e até ilustrações, e as diretivas, técnicas ou não, emitidas ao longo da temporada, ficamos com os cabelos em pé (os poucos que, neste momento, ainda sobram).
Confesso-vos que, tendo passado grande parte da minha vida profissional a ler, estudar, observar e, muito raramente, a escrever partes da legislação portuguesa, e conhecendo relativamente bem alguns exemplos das suas limitações (se tiverem 5 minutos, leiam, por favor, a Portaria n.º 52/2015, que define conceitos como “pão”, “pão fresco” ou “pão-de-leite”, ou o Decreto-Lei n.º 89/2014, que impõe a obrigatoriedade da atuação de uma banda de música antes dos espetáculos tauromáquicos), fiquei completamente esmigalhado com este dark side da F1.
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Não querendo massacrar quem teve paciência para sobreviver até aqui, deixo as minudências jurídicas de lado e acabo com uma ou duas perplexidades que este estado de coisas me provoca.
Desde logo, a “manta de retalhos” que a FIA vai criando, com cada vez mais regras, normas, previsões e definições a cada dia. A decisão de regular – de legislar, porque é disso que se trata – tem de ser muito ponderada, deve resolver problemas efetivos, coletivos e relevantes (piercings corporais?! A sério, FIA? É esse o vosso problema?!) e tem de ser mesmo uma solução para esses problemas. Parece-me que, neste momento, cada decisão oficial, prometendo uma solução, apresenta-nos todo um universo de novos problemas.
Legislem menos, menos vezes por ano e com maior distância temporal em relação aos acontecimentos que estão na origem da regra. Temos a mania de dizer que, em Portugal, reagimos a quente e “em cima do joelho”. Pelos vistos, não é só em Portugal. Quando a opinião mediática diz que há um problema, faz-se uma norma à pressa, emite-se um comunicado (ou mais do que um), se possível, com ilustrações, e resolve-se a coisa. Ou não… Uma das primeiras coisas que nos ensinam os livros é que temos de avaliar os efeitos das decisões normativas e mesmo os efeitos de não fazer nada. A FIA podia e devia ler um desses livros.
Há, para além de tudo isto, um custo reputacional para quem faz as normas e vê que elas não são aplicadas ou, sequer, aplicáveis. Para quem tudo regula – desculpem-me a vulgaridade – parece não “regular bem da cabeça”. Para quem faz tanta regra e contrarregra, até um palerma como eu se sente à vontade para escrever um texto como este.
Fico com a ideia de que a FIA acha mesmo possível regular todo e qualquer aspeto das suas competições, desde as questões mais normais, como as dimensões dos carros e dos pneus e a capacidade dos motores, até aos pormenores que deixariam corados todos os que sofrem de obsessão-compulsão (eu corei, confesso), num guião de tal modo rigoroso e supostamente planeado que até o mais inesperado acontecimento deve obedecer a uma coreografia mais precisa do que os desfiles militares de certos países.
Não me custa imaginar uma regra que diga o seguinte:
“1. Na eventualidade de se despistar, o piloto deve evitar voltas com menos de 360o, de forma a ficar virado no sentido correto.
2. Se, porventura, não puder evitar um despiste com um ângulo diverso do previsto no número anterior, o piloto deve procurar sempre colocar o carro no ângulo mais favorável para as câmaras de TV, privilegiando, neste caso, as câmaras da Netflix, se estiverem colocadas nas imediações.”
Acham exagero? Sabiam que, de acordo com o n.º 10 do Anexo 5 do Código Desportivo, na sala em que decorre a conferência de imprensa posterior ao pódio, têm de estar 3 garrafas de água não identificadas? E 3 toalhas, também elas sem identificação?! Percebo a preocupação. Tal como as coisas andam, ainda alguém protestava o resultado da corrida por lhe ter calhado um algodão turco mais áspero ou uma toalha com demasiado amaciador. Ou uma água com um Ph muito elevado. Para acidez já bastam as considerações do Dr. Marko.
Também gostei de saber que – cito – “Quando o banho de champanhe começa, deve ser tocada música. Estes acontecimentos apenas devem ter início depois de quem entregou os troféus ter abandonado o pódio.”
Fim de citação. Início de riso.
Depois, há a questão da linguagem. As normas são escritas em francês ou em inglês (não percebi qual a língua oficial da FIA), o que já implica um oceano – pelo menos um Canal – de diferenças. O inglês, língua que hoje é universal, é simples. Tem muito menos vocábulos do que qualquer língua românica (o francês, o italiano, o castelhano ou o português, entre outras). Logo, o espaço de interpretação é muito diferente para quem vai ler e tentar cumprir ou aplicar as regras. Já nem me refiro aos que têm por profissão encontrar essa zona cinzenta (os engenheiros de todas as equipas) para, assim, alcançarem o objetivo principal disto tudo: ganhar corridas.
Mais valia contratarem juristas de várias nacionalidades (o mercado chinês é essencial e o mandarim e o cantonês, tal como o alemão, são línguas muito concretas) e escreviam as normas todos em conjunto. Só não vale a pena escrever em italiano. Não só porque, segundo as más-línguas, as regras, durante muitos anos, foram escritas por aqueles lados, como ainda porque, infelizmente, nem com as regras escritas em italiano puro me parece que a equipa técnica da Ferrari, neste momento, acertasse com o raio do carro.
Enfim, o texto vai longo e, mesmo perto do final, ainda não tenho a certeza de que seja publicável no “Vamos Escrever sobre Fum”. Se, apenas e só graças à simpatia do Salviano, chegar a ver a luz do dia digital, tomem-no como um bom exemplo de má legística. Longo, complicado e sem conseguir resolver nada. Felizmente, não trabalho para a FIA. Mas, numa época em que a Liberty assume cada vez maior preponderância no espetáculo que adoramos, talvez não fosse má ideia ir buscar o Bill Clinton para resolver esta embrulhada.
João Amaral
Demorou, mas li tudo! Muitos parabéns, João Amaral, pelo texto muito bem escrito, informativo e elucidativo.
Aliás, apesar do pouco que te conheço (dos podcasts), não esperaria outra coisa. Já agora, muitos parabéns também ao João Salviano, pelo crescente aumento de qualidade e diversidade do produto "Vamos Falar de Fum".
Ótimo artigo. Li até ao fim.
Na minha opinião de leigo em matéria de leis mas de apaixonado da F1 há décadas, desde o ido ano de 84, nos meus imberbes 13 anos, deixo algumas notas:
1. Regulamentos, leis e anexos extensiiiiiiiiiiiiiiiisimos;
2. Algumas regras, não as consigo classificar, como menos do que rídiculas (ex: piercings e a, bem fresquinha, proibição de festejar no muro das boxes os finais de corrida);
3. Regulamento feito de retalhos de cada vez que há 1 issue;
4. Pela cada vez maior popularidade, o que é positivo, mas por outro lado "obriga" a reações mais rápidas, muitas delas a quente e sem serem pensadas e/ou estruturadas;
5. E isso deriva da gigante pressão mediática potenciada, em grande medida, pelas redes sociais;
6. Várias entidades a mandarem bitaites: FIA, Liberty, Team managers,...
7. Pela cada vez maior popularidade, e como no futebol, as análises até à exaustão, depois do cair do pano ,a tds os ínfimos detalhes e pormenores, entendendo quem o faz, mas ainda lançam maior confusão e tornam-se contraproducentes;
8. A atenção mediática, dos ocs não especializados, nomeadamente da imprensa tabloide, de acordo com a nacionalidade dos seus interesses, sejam pilotos ou equipas é só mais 1 pitada de sal (grosso) para o caldeirão em ebulição e pronto a transbordar a cada FP, Quali ou Corrida;
9. A futebolização da F1, e não só, como ainda recentemente vimos no Moto GP com as claques deste ou daquele, não augura melhorias no ambiente dos desportos motorizados, com visibilidade global;
10. Antes, a silly season começava antes do verão agora é always on com o mais diverso tipo de noticias, rumores e estórias;
11. Na próxima semana irei estar no WEC, no AIA. Felizmente a loucura ainda não chegou a esta competição, apesar do BOP :) , mas como não tem a mesma visibilidade, ainda, é capaz de ser 1 fds calmo e sem manchetes.
Um abraço e continuem o bom trabalho.
BA