A data? 26 de Maio de 1923. Depois de, em 1920, o ACO (Automobilie Club de l’Ouest) ter idealizado uma competição que, mais do que promover os carros, ajudasse no seu progresso e desenvolvimento.
O local escolhido? Três cidades francesas no departamento de Sarthe: Le Mans, Mulsanne e Arnage.
As “regras”? 24 horas, 2 pilotos que vão alternando entre si.
E assim nasceu a corrida mais famosa do mundo, revolucionando o mundo do desporto motorizado no que toca a corridas de resistência.
Após momentos inesquecíveis como a “quase” vitória de Pierre Levegh em 1952 (que infelizmente ficaria primordialmente associada ao maior desastre das 24h de Le Mans, e do desporto motorizado em geral), ou a batalha Ferrari x Ford que conduziria ao nascimento de uma lenda de seu nome Ken Miles (mesmo que, em 1966, tenha visto o que seria uma vitória mais que justa escapar para as mãos de Bruce McLaren), em 2012 assistimos à inclusão das 24 Horas de Le Mans num novo campeonato: o WEC (FIA World Endurance Championship).
Nascido de um compromisso entre a FIA e o ACO depois de vários anos de divergências, o WEC surgiu como um novo espaço com alguma liberdade regulamentar para os vários fabricantes da indústria automóvel poderem exibir as suas inovações tecnológicas perante uma audiência mundial, possuindo, simultaneamente, bastante flexibilidade para prosseguir a linha de desenvolvimento mais desejada. Passado algum tempo, o WEC contava já com grandes fabricantes como a Audi, a Toyota e a Porsche nas suas fileiras, adquirindo cada vez mais prestígio no palco internacional do automobilismo.
Depois de alguns escândalos e um período menos promissor onde a categoria de topo viu a sua grelha encolher drasticamente, um novo regulamento entrou em vigor em 2021 – nasciam os Le Mans Hypercar (LMH), vindo substituir os antigos (e dispendiosos...) LMP1 na categoria principal do campeonato. Seria algo revolucionário? Poderia renovar o interesse dos fabricantes?
Cem anos após aquelas primeiras 24 Horas de Le Mans, onze anos após o nascimento do WEC, penso estarmos em condições de afirmar que sim – o novo regulamento teve um impacto extremamente positivo.
A “temporada do centenário” abriu na sexta-feira, dia 17 de março, com as 1000 Milhas de Sebring, traçado norte-americano caracterizado pelos seus inconfundíveis “bumps”, que ganhou um estatuto mítico no desporto motorizado (e que, devo dizer, está sem qualquer dúvida no meu Top-3). No entanto, este ano foi diferente: estamos a testemunhar toda uma efervescência e entusiasmo que há muito não se via na resistência devido, claro está, à entrada (e regressos) de vários fabricantes à categoria mais elevada do campeonato. Atestando este mesmo hype está o facto de que, em 2024, teremos ainda mais fabricantes a juntar-se ao WEC!
A classe Hypercar tem vindo a crescer e, em 2023, conta com um impressionante recorde de treze protótipos (lista provisória!), incluindo dois construtores com LMH não-híbridos – a ByKolles, agora competindo sob o nome da Vanwall, e a Glickenhaus. Entre estes Hypercars incluem-se os LMDh (Le Mans Daytona hybrid) da Porsche e Cadillac – os LMDh são os sucessores da antiga classe DPi do campeonato norte-americano, fruto de um regulamento criado pelo IMSA e pelo ACO, com o pormenor particularmente importante de convergir com o regulamento dos LMH (embora com custos mais reduzidos e algumas distinções – guardemos esta questão para um outro artigo).
É, portanto, notável a popularidade dos novos regulamentos LMH e LMDh, que já se reflete naquela que é a maior grelha da categoria principal do WEC desde 2012.
Passando, agora, em revista os integrantes da classe Hypercar...
Seria um sacrilégio não dizer que o ponto de maior interesse esta temporada é, sem dúvida, o regresso do Cavallino Rampante à classe de topo da resistência 50 anos depois. Após nove vitórias seguidas nas 24h de Le Mans entre 1949 e 1965 (com nomes de peso como Phil Hill, Jochen Rindt ou Lorenzo Bandini), e da sua retirada da categoria em 1973, depois de um último duelo com a Matra, tivemos de aguardar meio século até que a equipa de Modena voltasse a presentear-nos com nova obra-prima – de seu nome 499P.
Para além da Ferrari, temos o regresso de outros nomes de peso à competição. A Vanwall apresenta-se finalmente com o seu Vandervell 680 depois de vários processos em tribunal.
(Vanwall Vandervell 680 #4 com Jacques Villeneuve, Tom Dillmann e Esteban Guerrieri. Foto: Autosport)
A Peugeot também está de regresso, agora para uma temporada a tempo inteiro após a estreia do seu 9X8 em Monza; tendo já saído vitoriosa nas 24h de Le Mans, no WSC (antigo World Sportscar Championship) e na ILMC (antiga International Le Mans Cup), a marca francesa procura agora alcançar bons resultados na categoria de topo do WEC.
Podemos, também, testemunhar o retorno daquela que é a construtora mais vitoriosa de sempre (19) em Le Mans: a Porsche, que traz para este ano o seu LMDh 963 em parceria com a gigante Penske.
A Cadillac, depois de anos de sucesso no IMSA, optou por tirar partido do novo regulamento e tentar também a sua sorte na categoria principal do WEC. Juntamente com a Porsche, é um dos dois fabricantes que atualmente têm os seus LMDh inscritos tanto no WEC, como no IMSA. No futuro, no entanto, teremos mais marcas a seguir o mesmo caminho, competindo quer na classe Hypercar, como na classe GTP – uma deles será a BMW que, embora esta temporada permaneça apenas no campeonato americano, tem entrada programada no WEC para 2024. Por sua vez, a Lamborghini tem vindo a ultimar os preparativos do seu LMDh para o estrear em ambas as classes já no próximo ano.
Mas como não só de regressos se faz este ano de centenário, temos ainda de falar dos tetracampeões e claros favoritos ao título de 2023: a Toyota, que, fazendo jus ao velho ditado segundo o qual “equipa que ganha, não se mexe”, mantém o mesmo alinhamento de pilotos com Kamui Kobayashi, Mike Conway e José Maria López no campeão em título #7, e Sebastien Buemi, Brendon Hartley e Ryo Hirakawa no #8.
Para além da Toyota, teremos também a continuidade da Glickenhaus, com apenas um SCG 007.
Inserindo aqui um pequeno parênteses, importa efetuar curta referência à Alpine: o fabricante francês apenas regressará à classe Hypercar em 2024, com um LMDh. Com um programa de resistência lançado em 2013 que já rendeu vários êxitos à marca francesa, entre os quais dois títulos, três vitórias à classe em Le Mans e vitórias em Sebring e Monza, em 2023 a Alpine apostou numa época de transição, baixando à classe LMP2. Embora seja uma categoria já bem conhecida do fabricante, a verdade é que trará desafios distintos na sequência de mudanças de regulamento.
Feitas as apresentações, passemos ao primeiro fim-de-semana de competição em Sebring, onde se correram as 1000 Milhas. Os treinos pareciam indicar que se atestaria mais uma vez o absoluto domínio da Toyota, mas o facto é que, no momento da qualificação, esta suspeita não se confirmou, e Antonio Fuoco, ao leme do Ferrari 499P #50, ofereceu a pole position à Scuderia ao marcar um tempo de 1’45.067, 214 milésimas mais rápido que o Toyota #8 e 8 décimas mais rápido do que o segundo Ferrari.
Às 16 horas de Portugal continental do 17º dia do mês de Março começou, então, a primeira corrida da temporada de 2023.
Tivemos uma boa surpresa nas primeiras voltas, com o Ferrari #50 a conseguir responder ao ritmo dos Toyota. No entanto, e apesar de ter partido da pole position, viria a terminar a corrida num longínquo terceiro lugar, sem conseguir levar à luta à Toyota. Ainda assim, boas indicações a nível de fiabilidade e de ritmo para a Scuderia, que saberá o que trabalhar antes da chegada a Portimão. Um pódio na estreia pode ter sabido a pouco, mas quer dizer muito.
Importa referir, contudo, os erros cometidos a nível de estratégia (onde já ouvimos isto?...). Após um incidente que envolveu o Ferrari 488 GTE #83 da Richard Mille, seguiu-se um longo período de Safety Car; foram várias as equipas que optaram por parar os seus carros, entre as quais a AF Corse – a equipa decidiu parar ambos os carros, um erro estratégico crasso que os fez perder tempo precioso devido ao elevado tráfego nas boxes, regressando à pista apenas na sexta e nona posições.
Além disso, o 499P #50 acabaria ainda por receber uma penalização drive-through por efetuar uma ultrapassagem sob Safety Car, e uma penalização adicional de 5 segundos por uma infração nas boxes. Os problemas também ainda não tinham terminado para o #51 – após um embate com um GT da AF Corse na curva 13 à sétima hora, o #51 não só ficou com danos, como recebeu uma penalização por causar uma colisão; viria a terminar na 15ª posição à geral.
Quanto à Cadillac, há vários pontos positivos a retirar desta primeira corrida no WEC com o seu LMDh. Antes de mais, convém lembrar que, com apenas um carro, e numa categoria com quatro fabricantes com um par de carros cada, ficar tão perto do pódio na estreia é um ótimo indício. Acabaria por terminar na quarta posição, a 10 segundos do Ferrari #50.
No que diz respeito à Porsche, embora tenha sido possível solucionar os problemas de fiabilidade verificados em Daytona, continua a persistir um défice significativo a nível de ritmo, assim como grandes dificuldades em termos de gestão de pneus no final de cada stint. 5º e 6º lugar foi a classificação possível.
Peugeot... o que dizer da Peugeot além de “completa desilusão”? Naquele que foi mais um dia para esquecer para a marca francesa, ambos os carros se debateram com variados problemas de fiabilidade. De facto, ainda antes do semáforo verde, a Peugeot viu o 9X8 #94 entrar de imediato no pit-lane com problemas na caixa de velocidades, não sendo este, de todo, o arranque esperado. Embora ambos os carros tenham terminado a corrida, ficaram apenas nas 31ª e 32ª posições, acrescentando uma chocante falta de ritmo à fraca fiabilidade.
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Vanwall e Glickenhaus, os fabricantes com carros não-híbridos, tiveram performances marcadamente distintas entre si. Enquanto o Glickenhaus 007 teve de abandonar após completar apenas 62 voltas com problemas de motor, o Vanwall Vandervell 680 saiu-se bastante melhor. Mantendo-se longe de problemas e com um ritmo razoável para o que seria expectável, o #4 acabou por surpreender e, apesar de uma falha na suspensão ter feito com que perdesse muito tempo nas boxes, terminando a corrida apenas na 30ª posição, há motivos para otimismo dentro da equipa. Afinal, o primeiro ponto a assegurar é esse mesmo: terminar as corridas. E, ainda assim, terminou à frente da Peugeot...
Apesar das altas expectativas relativamente à Ferrari, ou mesmo à Cadillac, e da intensa luta pelo terceiro lugar do pódio (com incríveis batalhas entre Vanthoor, no Porsche #6, e Lynn, no Cadillac, assim como de Molina, no Ferrari #50, e Estre, no Porsche #6), a verdade é que a experiência e fiabilidade da Toyota colocaram a marca japonesa numa liga à parte dentro da classe Hypercar, com incidentes, penalizações e falhas mecânicas a impedirem que os estantes conseguissem ser verdadeiros candidatos à vitória.
A Toyota viria a consumar uma dominante “dobradinha”, com os dois GR010 a controlarem a corrida praticamente do início ao fim. De facto, viriam a cruzar a linha da meta com uma vantagem superior a duas voltas em relação ao restante pelotão. Uma década de experiência mais uma vez a dar frutos, e o relógio japonês a não falhar uma única vez.
Poderá a segunda ronda trazer surpresas na ordem competitiva? Poderão determinadas marcas tirar partido das características totalmente distintas do Autódromo Internacional do Algarve face a Sebring e levar a luta à Toyota? O que podemos retirar desta primeira ronda é que, sem sombra de dúvida, existem ótimos indícios de um pelotão de Hypercars bem mais competitivo.
Joana Moreno
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